O parto normal afastou-se completamente do seu REAL
significado em consequência da prática rotineira de procedimentos inúteis ou
até mesmo prejudiciais ao processo da parturição e realizadas sistematicamente,
haja ou não necessidade, como numa produção industrial em série. Transformou-se a singela experiência de
"dar à luz a um bebê num parto normal", em algo associado à uma
complicada manobra médica.
Todas estas expressões (parto vaginal, normal, natural,
humanizado) significam primeiramente o "ato de parir por via
vaginal". As diferenças vão ocorrer quando o tradicional parto normal
(submetido à tantas intervenções e limitações) passa a ser conduzido como se
fosse um "parto anormal", muitas vezes com maior sofrimento e
repercussões desfavoráveis à mãe e ao bebê. Talvez seja esta a explicação
porque tantas mulheres tenham medo de parto normal.
Foram esses aspectos que propiciaram a abertura para o
conceito de "parto natural" (hoje complementado) com assistência
humanizada.
Protagonismo da mulher no parto humanizado Nascimento Amora (2017) |
A mulher sente-se livre para adotar as posições mais favoráveis durante o trabalho de parto - hospital D. Joaquim, Brusque (2017) |
O "parto normal" é o tradicional parto vaginal assistido em ambiente hospitalar, no qual são utilizados todos os procedimentos e intervenções protocolados como "de rotina".
Entre estes procedimentos estão: a raspagem sistemática dos
pelos pubianos (tricotomia), uso da sonda vesical para esvaziar a bexiga, jejum
completo de pelo menos seis horas, lavagem intestinal pré-parto (enema), punção
venosa permanente, intervencionismo na assistência durante todo o trabalho de
parto - tanto na administração mais liberal de recursos medicamentosos
(analgésicos, anestésicos, sedativos, ocitócicos para estimular, por vezes,
indevidamente as contrações) quanto nos toques vaginais repetitivos, rotura
antecipada e artificial da bolsa das águas (amniotomia), episiotomia (corte no
períneo) ou até mesmo a aplicação do fórceps de rotina desnecessário.
A parturiente em geral permanece deitada de barriga para
cima no leito ou sobre a mesa de parto, com as pernas elevadas e apoiadas nas
perneiras, sem poder caminhar ou adotar posições que lhe pareçam mais
confortáveis e facilitadoras para o parto. Ademais, o ambiente cirúrgico sob ar
condicionado e excesso de iluminação, a ausência de um acompanhante e a falta
de privacidade, "esteriliza" o clima emocional adequado àquele tão
significativo momento.
No período mais avançado do trabalho de parto, mesmo estando
hoje absolutamente contraindicada, ainda se faz uso da Manobra de Kristeller,
quando um dos membros da equipe faz compressão intensa do fundo uterino, na
intenção de "auxiliar" a contração uterina. Sua aplicação cria sérios
riscos, podendo causar rotura de órgãos como útero e fígado da parturiente.
Assim, o chamado "parto normal" deixa de ser um
evento fisiológico e ocorre sob grande número de interferências como as acima
mencionadas, embora muitas delas já sejam reconhecidas como desnecessárias ou
mesmo prejudiciais pela Organização Mundial de Saúde (OMS).
Parto humanizado
O termo "Parto Humanizado" não pode ser entendido
como um "tipo de parto".
"Humanizar o parto é um conjunto de condutas e
procedimentos que promovem o parto e o nascimento saudáveis, pois respeita o
processo natural e evita condutas desnecessárias ou de risco para a mãe e o
bebê". (OMS, 2000)
A humanização proposta pela ‘humanização do parto’ entende a
gestação e o parto como eventos fisiológicos perfeitos (onde apenas 15 a 20%
das gestantes apresentam adoecimento neste período necessitando cuidados
especiais), cabendo a obstetrícia apenas acompanhar o processo e não interferir
buscando ‘aperfeiçoá-lo’.
É no início da década de 70, com a divulgação dos princípios
preconizados por Frederick Leboyer, médico francês da Clínica Obstétrica de
Faculdade de Medicina da Universidade de Paris, na sua obra "Por um
Nascimento Sem Violência" que se passou a questionar o excesso de
intervenção médica em um momento existencial que deveria ser natural, o parto e
o nascimento. Através dessa nova visão e atitude mais atenciosa com o bebê na
cerimônia do nascimento, lançou-se um novo olhar para a mulher que estava
vivenciando tão intensa e complexa experiência. Neste momento surge o conceito
do parto humanizado.
De acordo com o Manual Técnico de Assistência Pré-natal do
Ministério da Saúde do Brasil- 2000, "a humanização da assistência ao
parto pressupõe a relação de respeito que os profissionais de saúde estabelecem
com as mulheres durante o processo de parturição" e envolve conceitos como
considerar a naturalidade do parto - que não requer condutas intervencionistas
-, levar em conta as necessidades, os valores individuais e os sentimentos da
parturiente, reconhecendo o seu protagonismo durante toda a gestação, parto e
nascimento.
Parto Natural na banqueta de parto - Nascimento da Amora, minha 4a filha (2017) |
Ainda conforme o manual, seria "direito da mulher a
escolha do local do nascimento e o apoio para a presença de um acompanhante que
a mesma deseje, e também promover o bem estar físico e emocional durante todo o
processo, desde a gestação até o nascimento, bem como aceitar a sua recusa a
certas condutas que lhe causem dor ou constrangimento".
"Humanizar o parto é respeitar e criar condições para
que todas as dimensões do ser humano sejam atendidas: espirituais,
psicológicas, biológicas e sociais." (Largura, M.L. - 1998).
Deve-se dar o devido tempo para que a gestante entre
naturalmente em trabalho de parto, evitando precipitar a chegada do bebê, ou
seja, antes da 39ª semana completa, assim como respeitar o ritmo de cada
nascimento, que varia para cada parto.
Desde o curso da 41ª semana, mesmo diante de uma gestação
saudável, a monitorização das condições fetais deverá ser feita mais amiúde,
como forma de prevenir complicações consequentes ao envelhecimento placentário
(pós-datismo).
A bolsa deverá romper espontaneamente durante o trabalho de
parto. Sua rotura artificial, caso se faça necessária, poderá ser realizada
apenas quando o trabalho de parto estiver bem avançado, objetivando coordenar
melhor a dinâmica uterina ou até mesmo para observar o aspecto do líquido
amniótico - presença de mecônio - em casos em que esteja ocorrendo alteração
significativa nos batimentos do coração do bebê.
A episiotomia só deverá ser realizada quando houver
indicação médica precisa, no momento do expulsivo, seja para evitar que o mesmo
se prolongue, seja para facilitar a realização de alguma manobra obstétrica
necessária.
Compete ao bom obstetra acompanhar, estar ao lado, cúmplice,
atento e não extrapolar o seu papel, pretendendo "aperfeiçoar" o que
faz a natureza, lançando mão de práticas inadequadas ou que não possuem
evidências para apoiar sua recomendação.
Para alívio das dores, a anestesia pode sim ser usada em um
parto humanizado em ambiente hospitalar, mas sua prática não pode ser liberal,
respeitando-se inclusive o desejo da mulher, caso este recurso não seja
estritamente necessário. É preferível lançar mão de métodos não invasivos, mais
"naturais", como banhos aquecidos (banheira ou ducha), massagens
locais e técnicas fisioterápicas de relaxamento.
Participação do companheiro, apoio à gestante |
Massagem para alívio de dores. Nascimento Isis (2013) |
Caso não deem resultado, introduzir medicamentos que aliviem
a dor, mas não interfiram na liberdade de se locomover nem na eficácia das
contrações. A anestesia tem seu lugar quando houver indicação médica ou quando
os demais recursos não sejam capazes de dar o suficiente conforto à mulher,
impedindo-a que vivencie prazerosamente a experiência do parto.
Palavra de especialista:
Dr. Cláudio Basbaum
GINECOLOGIA E OBSTETRÍCIA - CRM 11665/SPRETIRADO DO SITE "MINHA VIDA"
Baseados no que foi exposto, concluo:
• No parto
humanizado, a parturiente é a protagonista e não o médico ou sua equipe
• O
obstetra tem a obrigação de deixá-la participar da experiência do parto com
liberdade e lucidez (sempre que possível), tendo seu companheiro ao lado para a
primeira acolhida de sua cria quando chega ao nosso mundo
• Entender
que é um momento de crise e vulnerabilidade para a mulher bem como para o casal
• Não temos
o direito de transformar desnecessariamente o mais singelo acontecimento da
vida, o nascimento de um novo ser, numa complexa intervenção médica
• É nossa
tarefa enquanto médicos, entender que o parto é um processo irreversível, cuja
fisiologia deve ser respeitada, acompanhada com atenção e responsabilidade,
compreendendo as ansiedades e expectativas de cada mulher grávida, intervindo
apenas quando houverem indicativos comprovados, baseados em evidências
científicas para sua aplicação. Só assim criaremos as condições para
restabelecer a naturalidade do parto, sem as desnecessárias distorções que
ainda são cometidas pela medicina institucionalizada e que podem levar a
profundas repercussões desfavoráveis para mãe e feto.
• Entendo
que o conceito de parto humanizado, que pratico há 40 anos, envolve
obrigatoriamente o processo que se inicia desde quando a mulher sabe que está
grávida, se estende por toda a gestação, atendendo com amplo respeito a
fisiologia do trabalho de parto, eliminando todas as práticas rotineiras
claramente prejudiciais ou ineficazes que eram adotadas no parto normal, até
alcançar o momento soberano da acolhida do bebê, obedecendo os princípios do
nascimento sem violência defendidos por Leboyer.
A parturiente liberta, respeitada em suas expectativas e
temores, empoderada e reassegurada consegue, sim , dar à luz como antigamente,
passando a ser a protagonista principal daquela vivência tão especial. Compete
à equipe médica, no seu papel coadjuvante, estar ao lado, atenta e eficiente,
para só agir de acordo com as REAIS necessidades determinadas pela moderna
medicina baseada em evidências, com melhores resultados tanto para a mãe, como
para o recém-nascido.
Foram as distorções na conduta sobre o "parto
normal" (aquele parto vaginal que requeria o mínimo de intervenções) que
estimularam o surgimento do conceito de "parto natural" que envolve
também , sem dúvida, os princípios que definem o "Nascimento sem
Violência" preconizado por Frederick Leboyer²: resgatar a naturalidade no
ato de nascer. Resgatar a experiência do gerar e do parir em todos os seus
aspectos, preparando a mulher emocionalmente para assumir o seu novo papel, respeitando
e obedecendo a fisiologia do trabalho de parto e salvaguardando a segurança que
o momento requer, sem quebrar o encanto daquela cerimônia ímpar.
É isso que entendo como "parto natural com assistência
humanizada", para que se complete o círculo virtuoso da chegada de um novo
ser em nosso planeta. Os benefícios do "parto natural" são inegáveis
para o binômio mãe-bebê.
A mãe vivencia intensamente os tempos do parto, com mais
segurança, serenidade e com significativa redução de queixas dolorosas, já que
tem uma expectativa positiva de acolher o bebê em seus braços. A liberdade para
caminhar e buscar a melhor posição para cada momento do trabalho de parto dá
mais conforto, além de facilitar e agilizar o processo.
Benefícios para o recém-nascido
Para o recém-nascido, dentre os benefícios, podemos citar: a
ligadura do cordão umbilical só após a parada de sua pulsatilidade (dando
"um tempo" para que este aprenda a respirar pelos seus próprios
pulmões), a melhoria dos índices de vitalidade nos primeiros minutos (Índice de
APGAR), a redução de manobras como aspiração respiratória com sonda, o menor
risco de doenças respiratórias e de bronco aspiração, o aconchego e amamentação
no seio da mãe logo após o nascimento (que tanto facilita o vínculo afetivo
entre mãe e filho, permite alimenta-lo mais precocemente, hidrata-lo e
transmitir-lhe anticorpos que previnem a diarreia e a desidratação).
Contato pele à pele logo após o nascimento para melhor vínculo mãe-bebê e melhoria na lactação (nascimento Isis, 2013) |
Para que uma gestante alcance seu objetivo de dar à luz
através de um parto natural é importante que ela tenha um bom suporte na
assistência ao pré-natal. Sempre que possível, o casal deve planejar, pensando
em todas as etapas, não só da gestação, mas também sobre o parto e de como
criar um filho.
O novo assusta! É o encontro com o desconhecido! É papel da
equipe obstétrica conduzir o processo, desmistificando a gravidez e o parto
como doença, como um estado anormal, mas ao contrário, reforçando-o como
momento fisiológico que faz parte vital da condição humana. As informações
antecipatórias sobre as mudanças e novidades farão com que as dificuldades
sejam vividas e vencidas com muito mais facilidade, tanto durante a gestação
quanto durante o trabalho de parto. Informada, utilizando seu poder de escolha
e agora mais segura, a gestante/parturiente poderá viver amorosamente e com
intensidade todas as fases, desde o saber-se grávida até o momento em que este
amor se torna concreto, ao receber e conhecer seu bebê.
Notas do autor
¹. dentre os quais podemos mencionar: lavagem intestinal,
raspagem dos pelos pubianos, jejum, corte sistemático no períneo( episiotomia),
posição deitada durante todo o trabalho, rotura artificial e rotineira da bolsa
das águas, uso indiscriminado de anestésicos e medicamentos para promover a
contração uterina.
². Frederick Leboyer, médico obstetra francês que
revolucionou (na segunda metade do século XX) a conduta e o papel da equipe
médica no trato com a mãe e o bebê, no momento do nascimento, após temporadas
sabáticas na Índia. Tais condutas foram divulgadas na sua obra "Pour une
Naissance sans Violence" editada no Brasil sob o título "Nascer
Sorrindo".